sábado, 30 de novembro de 2013

Esmeraldo Lopes, um livro em pessoa


Lugori e Esmeraldo no sofá de Dona Cilá. Foto: Jucélia Almeida

Foram seis horas de muita conversa. A princípio, fui convidá-lo para prefaciar meu livro sobre os “doidos de Curaçá” que ainda está em gestação, mas o bate-papo, talvez instigado pela cerveja ou pela própria loucura, nos conduziu a uma discussão bem mais ampla.

O cenário: o muro da casa de Dona Cilá, com um monte de roupas penduradas no varal e algumas plantas que “enfeitavam” de caatinga o lugar.

Ele xingava, esculhambava, excomungava, e bebia. Contava história, fazia discurso, instigava. Fiquei boa parte do tempo só escutando sua prosa. E ele preocupado sempre perguntava:

- Tá compreendendo?

Falamos dos doidos e dos loucos, discutimos conceitos à luz de Foucault e ele dizia:

- Cuidado! Você está numa "zona de perigo".

Ele sempre alertava para eu sair desses quadrados, das opiniões de filósofos, da reprodução acadêmica, daquilo que estava pronto. E convidava para descobrir o novo e não ficar/viver escravo de certas leituras de mundo.
 

- Os tempos são outros. A sociedade mudou. Hoje não existe mais espaço para os doidos. De uns tempos pra eles “fugiram” daqui.

E contava trechos dos livros Opara, Vozes do Mato, Caminhos de Curaçá, Caatinga e Caatingueiros. E revelou que certo professor chamou sua atenção sobre a expressão “andava andando” que ele colocara num de seus textos, dizendo estar errada, que era uma redundância, que existia uma regra gramatical que a condenava.

- Eu posso "andar pensando", "andar sonhando", não posso?! Então disse, foda-se a gramática. Eu trabalho com expressões. Não vou empobrecer um texto só por causa da gracinha da gramática. Reconheço a sua importância, mas ela não é absoluta.

E finaliza:

- Eu escrevo ouvindo!

A conversa foi um pouco de tudo. Foi aula, orientação, humor, revelação, pesquisa, imaginário. Esmeraldo é não herói, aliás, ele detesta esse adjetivo. Homenagens? Nem agora nem depois, afirma! Ele não se sente mais seguro em Curaçá. E conta que certo dia quase brigou por causa de Nerimar.

- Estava tomando um cerveja quando Nerimar chegou com a porra da sua guitarra invisível e alguém o insultou. Tomei as dores e disse que o “estranho” ali era ele. E disse, se está incomodado, se pique daqui. Toque nele aí que eu quero ver se você é macho mesmo.

Assim como Nerimar, tantos outros foram agredidos pela coletividade, por estranhos. Se antes os doidos andavam por aí, entravam em nossas casas e faziam parte do nosso convívio; hoje é bem diferente, talvez tenha sido por isso que eles “sumiram” daqui. Agora são “lendas”.

Esmeraldo Lopes pode até não querer rótulos, ou como ele mesmo se intitula, ser um “anarquista reacionário sem causa”. Mas eu digo, querendo ou não ele é um dos sustentáculos da nossa cultura, um guardião. Não só por registrar e publicar em suas obras parte de nossa história, recuperar nosso passado, preencher lacunas. Ele, por si só, é um livro em pessoa, com infinitas páginas, cheio de vírgulas, exclamações, interrogações, mas sem ponto final.