domingo, 23 de março de 2014

Mãe Sérgia, símbolo da cultura curaçaense


Imagem rara de Mãe Sérgia. Foto: Acervo Curaçaense
No início anos 80, os editores do Jornal Asa Branca, em Curaçá, publicavam em suas páginas uma matéria que chamava a atenção das pessoas para homenagearem aos que tanto lutaram pela preservação da cultura curaçaense. Eles destacavam principalmente os que estavam envolvidos com a Marujada, maior manifestação popular da cidade, e faziam reverência a um nome especial: Mãe Sérgia.

Sérgia Maria da Conceição está intimamente ligada a história de Curaçá. Primeiro, ela é descendente de escravos, provavelmente, aos que pertencia a Dona Feliciana, fundadora da cidade; Segundo, o seu esposo, Seu Saturnino, um dos maiores mantenedores da Marujada, foi por muitos anos o “orientador” dos marujos. Terceiro, sucedeu seus pais na guarda da bandeira de São Benedito; E quarto, Mãe Sérgia, como ficou conhecida, foi a parteira responsável pelo nascimento de vários curaçaenses. Ainda assim, o seu nome parece se delir pela impiedade do tempo e as novas gerações estão cada vez mais distantes do passado e da própria história.

Mãe Sérgia, sem sombra de dúvidas, foi a parteira mais sublime que Curaçá já teve. Omar “Babá” Torres e Salvador Lopes, ainda nos anos 80, acendiam o sinal de alerta de todos para injustiça cometida à sua memória. “Além de zelar pela preservação da nossa cultura, ela foi importante na nossa comunidade como parteira, trazendo ao mundo pelas suas mães zelosas grande parte dos curaçaenses”, conclamavam.

Homenagem a Dona Sérgia. Foto: Luciano Lugori
Na época, os dois falavam da necessidade de uma maternidade para a cidade e sugeriram, nas folhas do “politizado” Jornal Asa Branca, o nome de Mãe Sérgia para o futuro prédio público. A maternidade foi construída, porém o nome homenageado foi outro, talvez por motivos políticos. Mais tarde, uma pequena travessa, próximo a sua antiga residência, recebeu o seu nome. Recentemente, uma escola também recebeu a denominação Mãe Sérgia, mas só foi isso, nada além.

Parece que quiseram reparar um terrível erro do passado. Aliás, não sei o que é pior, esse remendo disfarçado de abandono e desprezo ou a falta de respeito com Dona Sérgia. São poucos os registros, quer dizer, são pouquíssimas e raríssimas as informações relacionadas à sua memória. Não existe sequer uma fotografia original disponível, pelo menos que eu saiba, nem mesmo uma pequena biografia, relato ou coisa semelhante. O que existe é somente uma "cópia da cópia" de sua foto exposta no Museu e pequeno trecho biográfico que não ultrapassa as seis linhas. Na Biblioteca nem se fala. Não tem nada de específico, a não ser as palavras do sociólogo Esmeraldo Lopes, que faz referência a parteira no livro “Caminhos de Curaçá”. As mesmas informações foram republicadas no livro "História da Imprensa de Curaçá", do jornalista Maurízio Bim, e também transcritas neste texto.

“O menino nascendo e a parteira com um cachimbo na boca. Menino nascido, um assopro de fumaça na imbigo dele. Mãe Sérgia, a mais famosa. Fez muito trabalho de nascimento. Na rua, no tempo dela, pegou quase todo mundo que nasceu”, assim conta Esmeraldo. Ainda no mesmo livro, o sociólogo faz um pequeno, mas importante resgate de sua história. Ele disse que o nome “mãe” é a forma como as crianças nascidas pelas suas mãos a reverenciavam. Ela não cobrava pelos partos. E morreu bem velhinha. Os serviços prestados como parteira ocorreram, principalmente, nas décadas de 30, 40 e 50. Ele ainda registrou que Sérgia Maria faleceu no fim dos anos 60 com quase 100 anos. Recentemente, Mãe Sérgia foi representada no espetáculo “Paulo Cézar com Z”, peça de autoria de Luiz Sérgio Ramos, organizada para comemorar os 50 anos de Paulo Cézar Dias Torres, o último menino que ela "pegou", já com a idade bastante avançada, nos idos de 1963.

Mãe Sérgia é “Mãe símbolo de Curaçá”. Ela foi e continua sendo guardiã da cultura curaçaense. Até hoje os marujos ensaiam danças e cânticos em frente a sua casa. É de lá que saía e sai todos os anos a procissão em homenagem a São Benedito, um dos padroeiros de Curaçá. É lá que está guardada a bandeira do santo de devoção dos marujos. Como está documentado no Jornal Asa Branca, “Mãe Sérgia ainda está em nossa memória, mas tão somente em nossa memória”. E aqui, eu faço a mesmo apelo feito há quase 34 anos: “Deve haver um maior reconhecimento por parte de todos os curaçaenses da importância que essas pessoas tiveram na manutenção das nossas tradições culturais”.

sexta-feira, 21 de março de 2014

As peripécias de Nidinho


Nidinho, uma lenda viva. Foto: Luciano Lugori
- Ô Noêmia, me dê um cigarro.

Com uma voz em baixo tom, esfalfada e marcada por uma vida cheia de histórias e aventuras, Nidinho faz logo apelo à esposa e a quem quer que chegue à sua casa. Por ora deseja um cigarro, que, às vezes, insiste em chamá-lo de “ciguirro”. Com um olhar de quem busca lembranças bem no fundo da memória, Ivanildo ainda reconhece visitantes, mesmo que vagamente.

- Nido, você lembra de mim?

Perguntou Washington Andrade ao cumprimentá-lo.

- É o filho de Nenenzão.

Nidinho respondeu rapidamente, mesmo sem lembrar do nome e a qual filho se referia. Mas ele sabia que quem estava ali, bem à sua frente, era um velho amigo. Logo quis que Mimim o levasse para rua e, claro, pediu-lhe um cigarro. 

Um abraço, um sorriso

Ivanildo Torres Lima, como foi batizado, nasceu em 15 de dezembro de 1940, segundo suas próprias reminiscências. E assim preferi registrar. Ele ficou conhecido como Nidinho e suas histórias hoje fazem parte do “imaginário popular” em Curaçá.

Eu cresci ouvindo “resenhas” sobre as presepadas de Nidinho. Por exemplo, já ouvi falar que ele virou 14 carros. É um número um tanto curioso e exagerado, equivalente às vidas de dois gatos. Só aí se tem repertório para um livro ou mais, mas Nido de professora Noêmia vai além disso.

Seu bar, o baralho, a sinuca, o Botafogo, seu time de coração, suas respostas temperamentais à la Seu Lunga e suas aventuras o transformaram num personagem do folclore curaçaense, num verdadeiro mito.

E se o pessoal o aperreava indagando com o célebre “Quem foi Nidinho?” só pra ouvir a debochada resposta “Pelo menos já fui. E você que não é, não foi e nunca será”, posso afirmar que Nidinho “continua sendo”. Sendo alegre, mesmo fragilizado pela atrocidade do tempo. Sendo irreverente ao contar suas histórias mirabolantes. Sendo lenda. E mais, uma lenda viva.