quinta-feira, 7 de julho de 2016

Paradoxos da musicalidade sertaneja e do verdadeiro homenageado na “Festa dos Vaqueiros” de Curaçá

Em 2007, o Instituto Opara de Visão Ecosófica (INOVE) produziu, com roteiro e direção de Josemar Martins Pinzoh e Luiz Sérgio Ramos, um vídeo-debate que tematizou a “cultura da fuleragem”. Intitulado de “O Estado da Arte da Fuleragem”, o documentário incita a discussão sobre o excesso de utilização do recurso do “duplo sentido” em várias músicas que foram massificadas pela mídia e pelos paredões. Quase dez anos depois, pouca coisa mudou. Aliás, com relação aos paredões de som, eles se tornaram gigantescos e muito mais potentes, eles estão mais frequentes no cotidiano das cidades, impondo a vontade de seus donos, desrespeitando a coletividade e segmentando opiniões do público em geral.

A semiótica dos vaqueiros: de protagonista a coadjuvante. Foto: Reprodução

A “tradicional” Festa dos Vaqueiros de Curaçá tem se tornado um “corpo sem alma” e um “palco de divergências”. A cada ano que se passa, a festa está perdendo o brilho, e seu maior “astro” agora é apenas um mero figurante numa cidade batizada como a “capital dos vaqueiros”, inclusive esse é o chavão no pórtico da cidade. O desaparecimento do vaqueiro tem sido gradual até mesmo nos cartazes. Se observarmos bem, a imagem que antes ocupava a maior parte do material de divulgação, hoje perdeu espaço para as demais “atrações”, tornando-se apenas uma marca d’água nos anúncios e uma desculpa para a realização dos festejos que levam o seu nome, mas que na realidade há muito tempo não vos pertence mais.

A 63ª edição do evento rendeu muitas críticas nas redes sociais e até hoje ainda pairam pelas ruas da cidade comentários sobre o “fracasso” da festa. Bem verdade que os tempos são outros e que a tal arenga de que “gosto não se discute” ainda é repetido incessantemente. Gosto se discute sim, tem que se respeitar, mas nem tudo deve descer goela abaixo, quer dizer, ouvido adentro. Infelizmente o gosto (ou o erro) de ocupar o “circuito da festa” com “paredões” tem se repetido ano após ano. Será que os organizadores já se perguntaram se os vaqueiros “gostam” e “concordam” com isso? Será que as bandas tocam o que os vaqueiros querem ouvir? Será que o vaqueiro pode pagar pelo ingresso para ter acesso à própria festa? Sei lá...até já imagino o que vão dizer: “a festa foi vendida”. E de quem é a culpa? Só sei que não é dos vaqueiros. 

Não sei se as pessoas perceberam, mas durante as festas um grupo de “forro pé de serra” tocou – fora dos holofotes – músicas mais tradicionais e alheias aos ritmos mais eletrizados (desses tempos pós-modernos) que disputavam a “virilidade do som” nos paredões espalhados pelas ruas numa verdadeira confusão acústica. A banda boavistana animou não só os organizadores, mas também os adeptos da “boa música” que ainda acreditam que iniciativas simples como estas possam tomar maiores proporções, pois é intolerável que eventos como a Festa dos Vaqueiros torrem dinheiro e onerem os cofres públicos custeando “grandes atrações” em detrimento do verdadeiro sentido da festa e de seu homenageado.

É terminantemente proibido “vender” a tradicional festa a terceiros para lucrarem à custa dos “homens da alma de couro”. Se o lucro for o objetivo, então inventem outro evento, numa outra data e com outro nome. Porque usar o nome de vaqueiros – um dos nossos maiores símbolos – é no mínimo indecoroso. É duma falta de respeito sem tamanho, que exige de nós curaçaenses que prezam pela sua cultura, um aboio coletivo altissonante que emita profundamente a nossa lamúria. A festa dos vaqueiros tem que ser feita para os vaqueiros, afinal de contas, eles são os verdadeiros donos. Os outros é que são os convidados e não o contrário.

Discutir o resgate da Festa dos Vaqueiros é imprescindível. Estamos próximos de mais um pleito eleitoral e nós eleitores não podemos perder a oportunidade de cobrar dos candidatos a inclusão dessa pauta em seus programas de governo. É preciso criar uma legislação que organize a realização desse e dos demais eventos culturais de Curaçá. Criar uma política de resgate, proteção e difusão do patrimônio artístico, cultural e histórico de Curaçá deve ser uma das prioridades de todo e qualquer governo. Precisamos preservar a nossa memória, pois, como afirma o sociólogo Octávio Ianni, “a memória é o segredo da história”. 

Por Luciano Lugori
Professor, Jornalista e Curaçálico